terça-feira, fevereiro 14, 2017

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A Santa Anarquia do Reino de Deus



Por Hermes C. Fernandes

Nenhuma ideologia política tem sido alvo de tantos maus entendidos como o anarquismo. Para o senso comum, anarquismo ou anarquia são sinônimos de desordem, caos ou vandalismo. Foi baseado neste conceito equivocado que a profetiza norte-americana Cindy Jacobs relatou à cantora Ana Paula Valadão uma visão que teria tido com uma letra A dentro de um círculo (logo do anarquismo) que pairava sobre o Brasil, o que levou ambas à conclusão de que um “principado de anarquia” estava tomando o país de assalto, resultando em rebeliões nos presídios e o caos nas ruas do Espírito Santo devido à paralisação da política militar.

“Anarquismo” nada tem a ver com isso. Trata-se, antes, de um conjunto de princípios políticos, sociais e culturais que defende o fim de qualquer forma de hierarquia e dominação (política, econômica, social e religiosa). Em suma, os anarquistas defendem uma sociedade baseada na liberdade total, porém, responsável. O objetivo do anarquismo é superar a ordem social vigente através de um projeto construtivo fundamentado na autogestão, tendo em vista a constituição de uma sociedade libertária que tenha por base a cooperação e a ajuda mútua entre seus indivíduos livremente associados.

A própria origem etimológica do termo aponta para este conceito. “Anarquismo” deriva-se do grego anarkhos (ἀναρχος) que significa “sem governantes”.

Justamente por questionar a necessidade da autoridade,  o anarquismo tem sido visto por cristãos como incompatível com a proposta do evangelho. Afinal de contas, somos ensinados a nos submeter às autoridades constituídas, reconhecendo-as como ministros de Deus, ainda que sejam déspotas, tiranos, sanguinários.

Infelizmente, estamos habituados a ler as Escrituras com as lentes ideológicas que visam justificar o status quo. Não foi em vão que Napoleão Bonaparte disse: “Religião é uma coisa excelente para manter as pessoas comuns quietas.” Ou como bem conclui Karl Marx, “a religião é o ópio do povo.”

O que a maioria parece desconhecer é que a proposta cristã original nada tinha de religião (pelo menos, não o que hoje consideramos religião). Ela estava bem mais próxima de uma proposta revolucionária. Mas desde que se tornou numa religião estatal, o cristianismo perdeu boa parte de seu poder subversivo. O Estado apropriou-se de seu discurso e adaptou-o aos seus interesses. A mensagem do Cristo que antes fazia tremer os tronos dos poderosos, passou a justificar a sede de poder das classes dominantes.

O Cristo que emerge das páginas do Novo Testamento jamais poderia ser considerado rei nos moldes deste mundo. Ele está bem mais para um anti-rei. Seu discurso desarticula qualquer ambição de dominação.

Certa feita, Jesus flagrou um bate-boca entre seus discípulos para ver quem seria o maioral. Sua resposta foi paradigmática:

“Os reis dos gentios dominam sobre eles, e os que têm autoridade sobre eles são chamados benfeitores. Mas não sereis vós assim; antes o maior entre vós seja como o menor; e quem governa como quem serve. Pois qual é maior: quem está à mesa, ou quem serve? Porventura não é quem está à mesa? Eu, porém, entre vós sou como aquele que serve.” Lucas 22:24b-27

O que foi isso, senão um golpe desferido sobre a pretensão de se estabelecer uma hierarquia entre seus discípulos? Propositadamente, Jesus subverte a ordem baseada na autoridade imposta de cima para baixo. Em seu reino, o maior é aquele que serve à mesa, e não aquele que almeja ser servido. Ele nos introduz um novo conceito sobre o exercício da autoridade. Em vez de ser aquele que exerce controle, é aquele que exerce cuidado.

Alguém com um discurso desses teria que ser banido o quanto antes. Não eram seus milagres que preocupavam as autoridades da época, e sim o seu discurso revolucionário. O que Ele propunha não era uma insurreição contra os romanos, mas algo bem mais profundo e amplo. Um levante contra o modelo social baseado em hierarquias e controle. E a única arma que deveria ser usada para emperrar este sistema era o amor.

A natureza do reino que Ele representava era, indubitavelmente, anárquica. Ele mesmo, sendo o Rei enviado do céu, não pretendia impor-se como tal, mas apresentar-se como um servo, o menor de todos, o que se apresentava para lavar os pés dos demais.

A igreja por Ele iniciada tinha como objetivo oferecer ao mundo uma amostra grátis de como as coisas funcionam no reino de Deus. Uma comunidade formada por pessoas oriundas de todas as classes sociais, porém, niveladas pela graça. Qualquer distinção classista deveria desaparecer. Entre eles já não haveria distinção étnica, social ou mesmo sexista.

Muito antes da constituição da igreja neotestamentária, Israel experimentou um período de três séculos e meio de anarquia. Eis a prova cabal de que a utopia pode ser alcançada. Mesmo sem a presença operante do Espírito Santo iluminando as consciências (o que só ocorreria a partir de Pentecostes), as doze tribos de Israel coexistiram por 349 anos sem se submeterem à figura de um monarca.

Há um livro da Bíblia inteiramente dedicado a este período da história de Israel. Nele lemos que “naqueles dias não havia rei em Israel; porém cada um fazia o que parecia reto aos seus olhos” (Juízes 21:25).

Apesar de não terem reis, as tribos se articulavam entre si sob a orientação do seu Deus que falava pelos lábios de profetas.  Com o passar do tempo, os israelitas começaram a almejar constituir uma monarquia semelhante à de outros povos da região. Bastou que um dos juízes se destacasse para que eles o vissem como um pretenso candidato ao trono. Foi assim com Gideão que se recusou bravamente a ocupar a vaga. A proposta que lhe fora feita pelo povo que acabara de libertar da exploração dos midianitas era que Gideão não apenas se fizesse rei, mas também fundasse uma dinastia. “Domina sobre nós”, disseram eles, “tanto tu, como teu filho e o filho de teu filho; porquanto nos livraste da mão dos midianitas.” Quem em sã consciência recusaria a uma oferta dessas? Pois Gideão a recusou peremptoriamente: “Sobre vós eu não dominarei, nem tampouco meu filho sobre vós dominará; o Senhor sobre vós dominará” (Juízes 8:22,23). Ele teria sido o primeiro rei de Israel, caso se dobrasse ante as reivindicações do seu povo. Mas preferiu passar a vez. Se dependesse do herói hebreu, Israel seguiria sendo uma perfeita anarquia.

Séculos mais tarde, quando o oráculo de Deus pesava sobre os ombros de Samuel que reunia o triplo ofício de profeta, sacerdote e juiz, “todos os anciãos de Israel se congregaram, e vieram a Samuel, a Ramá, e disseram-lhe: Eis que já estás velho, e teus filhos não andam pelos teus caminhos; constitui-nos, pois, agora um rei sobre nós, para que ele nos julgue, como o têm todas as nações.” Por razões óbvias, Samuel sentiu-se ofendido pela demanda popular e trouxe o assunto a Deus que lhe disse: “Ouve a voz do povo em tudo quanto te dizem, pois não te têm rejeitado a ti, antes a mim me têm rejeitado, para eu não reinar sobre eles” (1 Samuel 8:4-7).

Apesar de sentir-se preterido por seu próprio povo, Deus resolveu atender ao seu apelo. Todavia, convém salientar que a monarquia foi uma concessão divina, não significando que expressasse “a boa, perfeita e agradável vontade de Deus” para o seu povo.

Alguém poderá objetar dizendo que já era plano de Deus para que mais adiante, Davi, que era um homem segundo o seu coração, ascendesse ao trono. Fica subentendido que Saul, o primeiro rei, foi um improviso, alguém que deveria esquentar o trono para aquele que seria, de fato, a provisão de Deus, de cuja descendência viria o governante dos povos, o Filho de Deus.

Permita-me uma analogia. Digamos que a anarquia experimentada por Israel naquele longo período equivalesse ao primeiro andar de uma construção. Deus, então, resolve ceder à pressão popular, permitindo a construção de um segundo andar que seria a monarquia. Davi e sua descendência equivaleriam à escada que ligaria ambos os andares. Através dele, Deus traria ao mundo um rei diferente de todos, que abriria mão do controle pelo cuidado, do poder pelo amor.

Em outras palavras, a provisão divina é tão vasta que abarca até nossos mais desastrosos improvisos.
Porém, isso não significa que Deus tenha desistido de seu plano original. Não há plano B. As eventuais contingências no percurso não impedirão a execução de seu propósito.

Dentro do contexto do Novo Testamento, ouso afirmar que Maria, a mãe de Jesus, foi a primeira pessoa a perceber o teor subversivo da proposta de Deus para a sociedade humana. Em seu cântico conhecido como Magnificat, ela expressa eloquentemente suas expectativas anárquicas:

“A minha alma engrandece ao Senhor, e o meu espírito se alegra em Deus meu Salvador; porque atentou na baixeza de sua serva; pois eis que desde agora todas as gerações me chamarão bem-aventurada, porque me fez grandes coisas o Poderoso; e santo é seu nome. E a sua misericórdia é de geração em geração sobre os que o temem. Com o seu braço agiu valorosamente; dissipou os soberbos no pensamento de seus corações. Depôs dos tronos os poderosos, e elevou os humildes. Encheu de bens os famintos, e despediu vazios os ricos.” Lucas 1:46-53

Depor os poderosos? Elevar os humildes? Esvaziar o bolso dos ricos? Distribuir bens para os famintos? Quem diria que a mãe de Jesus pintada pela tradição como uma figura inofensiva tivesse ideias tão revolucionárias e ideais tão libertários? Que educação ela não teria dado a Jesus, hein? Que tipos de valores ela não lhe teria passado?

Por incrível que pareça, este tipo de ideário perpassa todo o Novo Testamento. Dos Evangelhos sinóticos a Apocalipse.

Foi justamente este ideário subversivo e anárquico que bancou a postura dos apóstolos diante das ameaças recebidas da casta sacerdotal. Expressamente proibidos de ensinarem em nome de Jesus, Pedro e os demais responderam às maiores autoridades religiosas de seu tempo: “Mais importa obedecer a Deus do que aos homens” (Atos 5:29). O que repesentaria tal postura senão desobediência civil? A mesma pregada por Martin Luther King Jr, Mahatma Gandhi, Mandela, Leon Tolstói e tantos outros.

Nenhuma autoridade, por mais legítima que seja, tem a palavra final. Suas ordens devem passar pelo crivo da consciência. A submissão requerida nas Escrituras, sobretudo nas epístolas de Paulo e de Pedro, não pode ser confundida com subserviência (falaremos mais sobre isso num próximo post). Recuso-me a crer que Deus requeresse que obedecêssemos cegamente a alguém, violando nossa consciência em nome de um capricho qualquer.

Embora creiamos que as autoridades constituídas servem a um propósito divino, não atribuímos a elas inerrância, infalibilidade, tampouco vitaliciedade. Toda autoridade tem escopo e prazo de validade. Nenhuma autoridade pode extrapolar as bordas da sua esfera de atuação, nem o prazo estabelecido para o seu exercício.

O mesmo apóstolo que nos advertiu a que nos submetêssemos às autoridades, afirmou que agora mesmo os poderosos deste mundo “estão sendo reduzidos a nada” (1 Coríntios 2:6). O Cristo de Deus é aquele em cuja mão há um cetro de ferro com o qual está quebrando toda estrutura de poder. O anúncio da boa nova do reino é seguido pela denúncia das estruturas hierárquicas que visam manter os homens num cativeiro. E não imagine que a revolução virá de cima para baixo. Pelo contrário. Ela acontece de baixo para cima. Não se trata de uma intervenção apoteótica, mas de uma insurreição pacífica, motivada exclusivamente por amor.

A igreja é convocada a participar de uma conspiração divina que visa depor os poderosos e elevar os humildes, estabelecendo assim a anarquia do reino de Deus. Somos, por assim dizer, a ferramenta pretendida por Deus para emperrar a máquina, sabotar o sistema de dominação, opressão e exploração.

É a isso que Paulo alude no primeiro capítulo de sua primeira epístola aos Coríntios:

 “Porque, vede, irmãos, a vossa vocação, que não são muitos os sábios segundo a carne, nem muitos os poderosos, nem muitos os nobres que são chamados. Mas Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias; e Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes; e Deus escolheu as coisas vis deste mundo, e as desprezíveis, e as que não são, para aniquilar as que são; para que nenhuma carne se glorie perante ele.” 1 Coríntios 1:26-29

Por isso, a igreja precisa caminhar par a par com os movimentos sociais, identificando-se com seus clamores e aspirações. Em vez disso, temos nos alinhado aos poderosos, sem perceber que assim, estamos nos insurgindo contra o projeto do reino de Deus.

O último capítulo da história já foi escrito. Paulo nos oferece um irresistível spoiler:

“Então virá o fim quando ele entregar o reino a Deus o Pai, quando houver destruído todo domínio, e toda autoridade e todo poder. Porque convém que reine até que haja posto a todos os inimigos debaixo de seus pés.” 1 Coríntios 15:24,25

Não se trata do fim do mundo, mas da conclusão do processo histórico. Todas as estruturas de poder terão sido demolidas. A mensagem libertária do evangelho terá sido espalhada por todo o tecido social, gerando uma nova consciência que resultará no apogeu do processo civilizatório, em que governos se tornarão obsoletos.  Seremos, então, governados pela consciência iluminada pelo Espírito de Cristo. Cumprir-se-á a última pincelada profética de Paulo: Quando todas as estruturas de poder houverem se sujeitado a Cristo,  então, Ele mesmo “se sujeitará àquele que todas as coisas lhe sujeitou, para que Deus seja tudo em todos” (1 Coríntios 15:28). Haveria um desfecho melhor que esse? Deus será tudo em todos! Nada de hierarquias! Nada de governantes! Não mais nações divididas por fronteiras! Não mais a hegemonia do capital! Nada de exploração! Nada de opressão! Apenas Deus sendo tudo em todos.  Seja bem-vindo à santa anarquia do reino de Deus.


Na próxima semana, abordaremos Romanos 13 à luz do que expusemos até agora. 

Segue abaixo a palestra que dei recentemente sobre o tema em questão. Acho que vale a pena dar uma conferida.

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