quarta-feira, maio 03, 2017

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Um profeta "maluco beleza" e a "Marcha para Satanás"




Por Hermes C. Fernandes

Era verão. Estação predileta dos cariocas. O que significa praias lotadas a cada final de semana. E basta que tenhamos um final de semana seguido de feriado, e lá vamos nós para a região dos lagos. Este é o destino mais concorrido pelos cariocas durante a estação mais quente do ano.  Enquanto todos disputam quase que à tapa um metro quadrado das areias de Arraial do Cabo para fincar seu guarda-sol, como carioca atípico que sou, reuni minha família e fomos para Campos do Jordão. Trocamos o “Rio 40º” pelo “Campos do Jordão 14º" em pleno verão. Em vez de roupas de banho, casacos. No lugar dos chinelos de dedo, botas.  Em vez de churrasco na arejada varanda de nosso apartamento, fondue ou massas numa aconchegante cantina italiana.

Destinos. Cada qual tem o direito de escolher o seu. Mas quais os critérios que usamos na hora de decidir entre um e outro? O que influencia nossas escolhas?

Um dos debates mais longos travados pela filosofia e pela teologia gira em torno da tensão entre a soberania divina e a responsabilidade humana, ou se preferirem, entre a predestinação e o livre arbítrio. Esta difícil equação é tratada num dos menores livros do Antigo Testamento: Jonas.

Jonas é enviado por Deus a uma grande cidade chamada Nínive, capital do império assírio. Qualquer um gostaria de passar uma temporada em Nínive. Qualquer um, menos um profeta. Principalmente, tratando-se de um profeta hebreu. Seria um ótimo lugar para se passar férias, mas não para desempenhar uma missão tão árdua. O povo ninivita costumava ser amistoso com os visitantes, mas hostil com quem ousasse questionar seu estilo de vida. Ainda assim, Deus demonstra se importar com eles. Algo teria que ser feito para que se evitasse a degradação daquela sociedade. Ser enviado a Nínive era um voto de confiança e tanto.  Mas Jonas não estava disposto a honrá-lo.

Ao ver a fila dos passageiros que embarcavam para Társis, tratou de comprar seu bilhete. Afinal de contas, Deus é o mesmo em todo lugar, não é mesmo? Se Ele poderia usá-lo em Nínive, por que não o usaria em Társis?

Jonas age como se a ordem divina não passasse de uma sugestão que poderia ou não ser acolhida. No exercício de sua liberdade, Jonas opta por desobedecer.

Convém aqui distinguir entre livre arbítrio e livre agência. O primeiro diz respeito à suposta capacidade do homem de arbitrar de maneira isenta de qualquer influência. Ora, tanto à luz da teologia, quanto da filosofia e até da psicologia, o livro arbítrio não passa de um mito. Todas as nossas escolhas são direta ou indiretamente influenciadas pelo ambiente, pela cultura, por pressões sociais, por taxas hormonais, e tantos outros fatores que dificilmente conseguiria enumerar. Apesar disso, somos responsáveis perante Deus por nossas escolhas. Caso contrário, não faria sentido sermos julgados por elas. Como agentes morais, somos dotados de livre agência. Independentemente de quantas vozes ouçamos no transcorrer do processo de escolha, cabe-nos a decisão final.

E como fica a soberania de Deus nisso tudo? No mesmo lugar de sempre. Absoluta. Somente um Deus verdadeiramente soberano não se sentiria ameaçado pela liberdade humana. Um Deus que precisasse nos privar desta liberdade para assegurar Sua soberania, estaria demonstrando o quão fraco e inseguro é.

Vamos deixar esta discussão para outra hora. Voltemos a Jonas.

O texto bíblico diz que ele pagou pela passagem. Não vejo razão para este detalhe, senão como aviso de que, quando optamos por fazer nossa própria vontade, quem paga o bilhete somos nós.  Mas se nos submetemos à vontade de Deus, Ele mesmo arca com os custos. Assim como ocorreu aos discípulos enviados por Jesus de cidade em cidade, sem lenço e nem documento. Ao retornarem, o mestre perguntou-lhes: Porventura vos faltou alguma coisa? E a resposta dada em uníssono foi: Nada!

Tudo seguia tranquilo até que uma inesperada tempestade atingiu em cheio o navio. Primeira medida tomada pela tripulação: livrar-se da bagagem. Com o barco mais leve, o naufrágio se tornaria numa possibilidade mais remota. Porém, a medida drástica não foi suficiente. O navio ameaçava quebrar ao meio.

Não basta tornar a vida mais leve, livrando-se dos pesos extras da preocupação. Nem basta praticarmos atos benevolentes por desencargo de consciência. Há que se descobrir a razão pela qual nosso barco existencial está a um fio de afundar. Que tal começarmos investigando os porões de nossa alma? Pois ideia semelhante teve o capitão daquela nau. Descendo ao porão do barco, flagrou ali o profeta rebelde tirando um cochilo. Enquanto cada membro da tripulação clamava à divindade de sua devoção, Jonas dormia. Espera aí... quem consegue dormir numa situação daquela? Quem consegue apagar embalado pelos açoites das ondas?

Ora, se Jonas consegue, nós também conseguimos. Jonas é o retrato da igreja cristã de nossos dias. Deixamos a proa do navio e nos aconchegamos em seu úmido porão, sem nos importar com o nauseante balanço provocado pelas ondas. Cultivamos uma espiritualidade que nos aliena da realidade e nos torna indiferentes à tragédia que nos circunda, como se não fôssemos igualmente vítimas dela. E ainda por cima, nos achamos no direito de julgar e condenar os que clamam pelo socorro de outros deuses.

Ficamos ofendidos com a marcha para Satanás, mesmo percebendo não passar de uma sátira que visa expor o anacronismo de nossa agenda. Enquanto dormimos o sono da indolência ao som dos trios elétricos que nos conduzem pela avenida em nossas marchas para Jesus, os que dizem marchar para Satanás clamam em favor das minorias, saem em defesa de valores que nos deveriam ser caros. E nós, os que marchamos para Jesus, estamos mais preocupados em dar uma demonstração de nossa força. Nem sequer cogitamos que nosso fervor está sendo usado como capital político usado inescrupulosamente na barganha entre os líderes eclesiásticos e os detentores do poder político.

Jonas teve que ouvir um sermão do capitão do navio.

- Acorda, dorminhoco! Quem é você? De onde vem? Você não é nenhum gaiato, é?

- Eu sou hebreu e temo ao Senhor.

- Então, trate de nos dizer por que razão nos sobreveio este mal.

Como era costume entre os povos antigos, lançaram sorte e ela caiu sobre Jonas. O profeta agora estava encurralado. Todos cobravam dele uma resposta. Tonto de sono, Jonas assume a responsabilidade pela situação.

- O problema aqui sou eu. Se quiserem poupar suas vidas, lancem-me ao mar.

Ora, até onde sabemos, só havia pagãos naquele barco. O que esperar de gente que não comunga de nossa fé? No mínimo, não titubeariam em arremessar o profeta do navio imediatamente. Em vez disso, optaram por remar com mais força para tentar alcançar a terra seca. De onde menos se espera, compaixão. De onde mais se espera, indiferença. Deus estava dando uma baita de uma lição no profeta rebelde, semelhante à dada por Jesus aos Seus discípulos com a parábola do Bom Samaritano.
Vendo que era inútil remar, os homens daquele navio clamaram ao Senhor. Lançar Jonas ao mar era a última medida que pretendiam tomar. Tenho a impressão de que o próprio Jonas deva ter insistido com eles que, finalmente, cederam.

Homem ao mar!

É disso que a igreja contemporânea necessita desesperadamente. Um choque de realidade. Enquanto não deixarmos o conforto dos porões de nossa religiosidade e não formos arremessados no mar da realidade, não poderemos retomar a rota da qual temos fugido há tanto tempo.

Deus, porém, já havia preparado um submarino para resgatá-lo. Um submarino de carne e osso, coberto de escamas (antes de que digam que baleia não tem escamas, devo salientar que em lugar algum do texto é dito tratar-se de uma baleia). Engolido pelo grande peixe, Jonas concluiu que estava no inferno. O que dizer de um lugar fétido e gosmento e ainda por cima sem luz?

Por alguma razão que não nos é revelada, Jonas cria que mesmo do inferno Deus poderia ouvi-lo e reverter sua sentença. Por isso, clama desesperadamente. Admite seu pecado. Implora por misericórdia.

Três dias depois (que pareceram uma eternidade), surge uma luz que o deixa quase cego. A língua do peixe se estende como um tapete vermelho e Jonas é convidado a se retirar.

Uma voz se faz ouvida desde o céu: Levante-se e vá para Nínive!

Nossa liberdade não interfere nos planos de Deus. Às vezes aprendemos às duras penas que “nenhum dos seus planos pode ser frustrado”.  De uma maneira ou de outra, o propósito de nossa existência se cumprirá. O universo inteiro está calibrado para isso. Por isso, inútil é tentar fugir dos propósitos divinos.  Temos, porém, diante de nós, duas alternativas: a mais fácil e a mais difícil. A indolor e a dolorosa.

O que parecia ser castigo, na verdade era livramento. Não apenas para Jonas que se afogaria caso o peixe não o tragasse, mas também para milhares de ninivitas que pereciam sem a oportunidade de conhecer a vontade de Deus e se arrepender de seus descaminhos. 

Não somos o centro gravitacional do universo.  O Deus que tanto se importa conosco, também se importa com o restante da criação. Ele não vai livrar nossa cara ao custo de perdição dos demais.

Então, que tal deixarmos de “recalcitrar contra os aguilhões” e nos rendermos a este amor do qual somos canais e não apenas receptáculos?


Esta reflexão continuará ao longo da semana. 

***

P.S. Sinto-me feliz de morar num país em que seja possível marchar pelo que quisermos. Pena darmos tanto peso ao que não passa de uma sátira, sem perceber que os satirizados somos nós. E com razão. Em vez de alardearmos a igreja quanto à insurgência do mal, deveríamos submeter-nos a uma autocrítica madura. Quem fornece a munição usada para nos satirizar somos nós mesmos. Tornamo-nos numa igreja caricata, bem distante do ideal proposto pelo Cristo a quem dizemos amar. Quem, de fato, marcha para Satanás, é quem se opõe ao projeto de Deus de redimir toda a criação. É quem segue o rumo ditado pelo sistema baseado em valores contrários aos do reino de Deus. Um sistema em que o maior é o que se impõe sobre os menores, o primeiro é quem sabe se valorizar, o mais forte é quem prevalece sobre os mais fracos e o sábio é quem sabe tirar vantagem de qualquer situação. Em contrapartida, quem, de fato, marcha para Jesus é o que entende que no reino de Deus o menor é o maior, o que admite sua fraqueza é o forte, e o que não se estriba em sua própria sabedoria é o verdadeiro sábio. O resto é gaiatice, não importa o  nome que exiba, Jesus ou Satanás.

Atendendo a pedidos de quem grita da plateia: "Toca Raul!"


5 comentários:

  1. Anônimo1:08 PM

    Texto muito interessante, porém o gado (que é a maioria dos evangélicos no Brasil graças a nossa péssima educação que não ensina questionar, apenas obedecer) não vão gostar e nem ler inteiro e se vão continuar indo nos eventos para o rebanho.

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  2. Anônimo10:08 AM

    Hermes, muitas bandas do mundo, querem expressar paz, amor etc em suas músicas, como o conjunto de rock progressivo o U2.
    Mas,sem o poder do Espírito Santo, e a pessoa não for convertida totalmente em Jesus, as músicas são apenas palavras vãs, vazias, não faz efeito nenhum para mudar a pessoa.
    Digo isso também para alguns conjuntos gospel que está pior do que os conjuntos do mundo, tem mundanos que estão dando melhor testemunho de vida do que milhões de crentes por aí.

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  3. Perfeito! Continuemos gritando, protestando, saindo sa zona de conforto!

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